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Vale da Coroa Capítulo 2

Os rios que fluem em nossos corações são águas traiçoeiras. Você terminará encalhado.

 

Capítulo II

 

Ron Tegard era um homem amargurado com pouco a perder exceto a própria vida, o que não era tão importante para ele de qualquer forma. A única coisa que lhe importava, eram seus cães e matar.

Nascido na região rural do Vale da Coroa e criado por um treinador de cães de caça e uma enfermeira de batalha que morreu jovem, Ron Tegard ascendeu como um grande combatente e eficiente rastreador nas filas do Escudo. Alguns diziam que ele foi o melhor cão de caça treinado pelo seu pai. Quando os ataques do povo vindo Leste do Vale da Coroa se tornaram mais constantes o Escudo passou a se dedicar a defender as montanhas que esses trogloditas costumavam tentar escalar. Muito devotos à magia arcana, os trogloditas possuem diversos conjuradores em suas fileiras e como líderes.

Ron Tegard aprendeu a treinar cães com seu pai e os usou em técnicas para rastrear e caçar os faiscadores, como são chamados os conjuradores arcanos dos trogloditas, dando assim origem a uma nova divisão do Escudo apelidada de Cães de Caça. Com Tegard enquanto capitão os Cães de Caça patrulharam as montanhas e combateram os trogloditas se especializando em abater ou capturar os faiscadores. Até o dia em que ele se apaixonou por uma delas.

Ron Tegard foi destituído de seu cargo como capitão dos Cães e preso por traição ao se aliar com um inimigo, auxiliando a sua fuga que resultou na morte de mais de quatro homens do Escudo.

Os homens a bordo do Trovoada Celeste receberam com muita animosidade o ingresso de Tegard, o Cão Traidor, ao seu navio. Apenas a fama de William Dufort e o respeito e admiração que ele merecia de todos os homens da Coroa e do Continente impediram a tripulação de atirar Tegard para fora do barco em alto-mar na primeira oportunidade. O Comandante William ordenou que Tegard fosse tratado com a cortesia que todo humano merece e que ele seria necessário na missão que desempenhariam. Lembrou que todos nós merecemos uma segunda chance e que cabe apenas aos Deuses julgarem nossas ações.

Após alguns dias de viagem as palavras do paladino diminuíram de efeito e a tripulação tratou Tegard e seus cães rispidamente, isolando-o. Deram a ele como aposento no navio um armário de ferramentas próximo ao convés de forma que ele foi o primeiro a testemunhar uma estranha cena quando o navio em plena expedição enfrentou uma tempestade noturna, que começou repentinamente.

Vento forte e chuva grossa assolavam o mundo, escurecendo o céu. Pouco se via e só o que se escutava eram trovões explodindo ao redor, fazendo a tripulação se arrepender por estarem em alto mar. As águas bravas chacoalhavam a embarcação de um lado para outro, e s surpreendentemente, andando pelo convés estava o novato que foi apanhado no meio da viagem.

Exposto à chuva intensa e ventos uivantes Nôvagrad ainda por cima corria o risco de ser arremessado para fora do navio a cada vez que uma nova onda acertava o casco do navio. O jovem inocente não parecia se importar, apenas berrava de braços abertos. Tegard concluiu que ele só poderia estar fora de si ou era simplesmente tolo demais para saber melhor, e decidiu abrir a porta de seu armário-quarto e gritar:

– Seu tolo desmiolado, venha para dentro agora!

Se o tolo ouviu as palavras do Cão ele não reagiu e continuou virado na direção oposta gritando com os céus que respondia com diversos relâmpagos e estrondosos trovões.

Nôvagrad não era de fato um tolo, porém não corria nenhum perigo real. Como dizia o velho monge cego Enzo ele era o Portador da Tempestade, afinal de contas. Nôvagrad estava molhado, com frio, subnutrido, com os músculos cansados e doloridos, levemente desidratado, livre, dono de seu próprio destino e acima de tudo, feliz.

Gritava ele aos céus convidando-o a fazer o seu pior. A chuva, o vento, os raios, trovões e relâmpagos o faziam se sentir absolutamente vivo, e pela primeira vez na sua curta existência, ele achava que estar vivo era uma boa ideia. Antes de ser Nôvagrad ele achava que iria morrer a qualquer momento, por falar, por comer da comida de seu clã, por ser fruto de traição, por existir. No monastério ele achava que ele seria morto quando descobrissem do que ele era capaz de fazer. Começou com pequenas correntes de vento, que se tornaram mais velozes. Raios de eletricidades podiam ser conjuradores de sua mão conforme sua vontade ou humor aos nove anos de idade. Sempre teve muito medo de contar ou mostrar a qualquer um.

Agora, aos 16 anos Nôva podia se levitar a alguns centímetros do chão e emitir fortes lufadas de vento, o que nesse clima, ninguém perceberia que vinha dele. Mas empolgado com o momento e sem saber que estava sendo observado Nôva se descuidou e levitou do chão meio metro durante alguns segundos e quando voltou ao chão seus joelhos cederam à pressão de um golpe por atrás deles e sentiu uma mão pesada em seu ombro.

– Seu maldito faiscador! Está tentando afundar esse navio? – Ron falou bem perto do ouvido de Nôva para se certificar que ele ouviria dessa vez. E continuou, enquanto posicionava uma faca na garganta dele, dessa vez para se certificar que entenderia: – Ou se estiver tentando se matar, precisa de uma ajuda?

– Yau, homem se acalme! Ok? Parou, acabou a brincadeira, pode me soltar!

A chuva começou a diminuir para facilitar a discussão entre os homens.

– Você é um faiscador. Veio nos espionar? Sabotar!?

– Do que você tá falando? Eu não sou ninguém, ok? – Nos meses após sair do Monastério Sagrado da Cerejeira, Nôva seguiu sendo tagarela, mas se descobriu uma pessoa calma e divertida, porém seus anos de castigo e raiva auto contida o fazia esconder um temperamento que podia explodir a qualquer momento. Essa era a verdadeira Tempestade que portava. – Me solta, agora.

– Isso pareceu uma ameaça faiscador. Há! Estou morrendo de medo. – A chuva havia se reduzido a uma garoa e o vento se acalmara, o mundo pareceu de repente segurar a respiração, enquanto Ron Tegard moveu a mão do ombro para o cabelo de Nôva, puxando para trás e expondo mais a garganta com a faca ainda encostada.

Após a diminuição da tempestade o resto da tripulação ouviu os gritos no convés e saíram de seus aposentos para ver o que acontecia. Os primeiros homens emergiram do alçapão no exato momento em que Nôva ainda ajoelhado e Tegard com a faca em seu pescoço discutiam aos berros e rosnados, até que Nôva parou de falar e olhou fixo para o chão, seus olhos perderam o foco e se inundaram de branco, o vento recomeçou a aumentar de velocidade, até que Nôva proferiu uma série de palavras que ninguém entendeu, mas ressoaram a toda volta para ouvirem acompanhadas de um trovão, como se ambos cantassem a mesma música e ao final de longas três palavras em um idioma ininteligível, Tegard foi arremessado para longe atingido por um raio que emanou de Nôvagrad. Todos permaneceram em silêncio após Tegard ser arremessado contra a borda do navio no exato instante em que a chuva parou completamente, como se alguém fechasse a torneira, e todas as últimas gotas caíram do céu ao mesmo tempo e acertaram o chão em um único baque.

Nôva se levantou e com alguns passos à frente encarou os tripulantes, os olhos ainda completamente brancos. Quando um deles falou:

– Olha só chefe, quem diria que quando pegamos o menino morrendo de fome naquele dia ele seria a merda de um mago?

– Eu não sou um mago. Eu não sei o que sou.

– Calado, bruxo, feiticeiro, demônio, ou seja, lá o que for. Vamos te levar para as jaulas lá embaixo até descobrirmos o que faremos – Disse o Capitão Anton Bonitão.

 

 

O Capitão Anton Bonitão foi considerado por todos os seres inteligentes, de qualquer sexo ou raça, que já o viram como um homem inegavelmente feio.

Eis seu apelido de Bonitão.

Quase tão facilmente detectável quanto sua falta de beleza era seu senso de justiça e habilidade de comandar um navio.

Eis sua posição de Capitão.

Anton ordenou que ninguém matasse o faiscador e nem o cão traidor, mas optou por mantê-los encarcerados até que pudesse entregar às autoridades. O problema é que a expedição não poderia ser desviada e eles só possuíam uma jaula. Não lhe pareceu a melhor ideia colocar um matador de faiscador e um faiscador em um espaço fechado de poucos metros quadrados. Seria como uma arena, porém era necessário e a única maneira de manter todos seguros. Tanto a tripulação quanto os dois, Anton ponderou que o risco de um matar o outro era o menor a ser tomado. Um guarda foi posto de vigilância para conter esse risco.

Anton Bonitão fez a melhor escolha possível com as informações que lhe eram disponíveis e não tinha como prever que Ron Tegard e Nôvagrad da Tempestade usariam o tempo na jaula juntos para, depois de algumas tentativas de homicídios, conversarem, desabafarem sobre suas respectivas vidas, e eventualmente se tornarem o primeiro amigo que um e outro já teve.

A jaula era literalmente uma jaula, destinada a transportar animais no navio, era ocasionalmente usada para conter humanos. Tratava-se de um cômodo pequeno e retangular do navio cujo centro havia barras de ferro se projetando do chão até o teto separando dois metros quadrados no seu centro forrado de palha. Sentados apoiados em extremidades opostas da jaula Ron pensava o que responder para Nôva, e então decidiu que não havia coisa melhor a fazer do que responder contando a história toda:

– Eu não matei os patrulheiros do Escudo e muito menos traí a Coroa. Mas eu ajudei Dogah e ela provavelmente matou os Cães de Caça.

– Dogah?

– Um dia eu recebi informes de um avistamento de um troglodita vagando sozinha nas montanhas. Eu fui acionado para encontrá-la e verificar se era uma faiscadora. A segui por algumas horas até ela parar em uma lagoa para lavar roupa, se abastecer de água e tomar banho. Confirmei que ela era uma bruxa.

Ron olhou para muito além do que havia para ser visto dentro daquele cômodo escuro do navio. Seu olhar atravessou os tempos para um futuro que nunca chegaria.

– Ela era uma bruxa, com certeza, mas também é a criatura mais linda que eu já vi. Diferente dos outros faiscadores e bruxas que eu já vi, ela era… Diferente. Montou acampamento ali mesmo e eu a observei até adormecer. Suas ações, não eram condizentes com a de um inimigo. Ela carregava uma arma simples que manuseou sem familiaridade, não parecia querer nos fazer mal, parecia que estava tentando sobreviver e fugir…

Nôva aguardou até Ron terminar de olhar para sejá lá o que estivesse vendo no futuro hipotético e continuar.

– No segundo dia eu a abordei, me apresentei como alguém de passagem, um curioso. E ela me olhou, como nenhuma bruxa jamais me olhou. O olhar dela não havia ódio. Conversamos durante horas a fio. Isso se seguiu por dias.

Nesse momento Ron olhou para Nôva e lhe fez uma pergunta inédita, respondida com um simples balançar negativo de cabeça:

– Já se apaixonou Nôva? É algo esquisito, que mexe com seus instintos e juízo. Eu contei a verdade a Dogah, sobre quem eu era, que era treinado para matar pessoas como ela. Eu pedi que me esperasse enquanto buscava minhas coisas e prometi que fugiríamos. Encontraríamos uma terra na qual plantar e viveríamos em paz.

Num rápido movimento de seus olhos Ron trouxe sua visão de volta do futuro hipotética que nunca poderia ter para o momento do passado que nunca esqueceria. Lágrimas desciam copiosamente.

– No dia seguinte – Outra pausa – Eu voltei à lagoa e eu a encontrei… Ela estava, estava… Morta, mas não só morta – a partir dessas últimas palavras o discurso demonstrou mais raiva do que tristeza enquanto ele continuou. – Pior do que morta. Ela foi humilhada. Desrespeitada. Sangue por toda parte, havia membros dela em cada canto da lagoa. Eu demorei alguns minutos para encontrar a cabeça sem escalpo dela. Mas quando achei, havia um bilhete.

Enquanto falava Ron discretamente alcançou o bolso escondido dentro da camisa onde guardava o bilhete e o entregou a Nôva, que hesitou um segundo antes de se esticar e apanhar o bilhete com os dizeres “Aí está sua meretriz faiscante Tegard, agora corra, vai ser um prazer caçar você também.” Logo abaixo havia a assinatura A. C.

Tegard aguardou Nôva olhar pra ele para explicar:

– A.C. Alan Corg, o meu segundo em comando. Atual Capitão da Divisão dos Cães. Foi ele quem me denunciou para a Guarda, forjou tudo para me prenderem. Dogah apenas se defendeu antes de eu chegar até a lagoa.

– Como você terminou aqui?

– Você é a segunda pessoa a ouvir meu relato. Comandante William Dufort foi o primeiro. Ele inventou que eu era o único que poderia ser mandado nessa missão que estamos. Era preciso um rastreador, e ele argumentou que um traidor condenado à morte era a melhor opção, pois é uma missão praticamente suicida mesmo.

Ron Tegard era um homem apaixonado que perdeu tudo, tornando-se amargurado. Agora apenas se importava com duas coisas: com seus cães e matar Alan Corg.

 

 

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