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Vale da Coroa Capítulo 3

Os deuses riem enquanto tecem o nosso destino

 

Capítulo III

 

Abaron Lobran era um influente comerciante da cidade do Vale da Coroa, dono de diversos navios transitando pelo grande Rio Aorta. Quando um de seus navios atracou no porto trazendo de volta sua bela esposa, Abaron sofreu a maior humilhação e desrespeito de sua vida. Sua esposa regressava de uma expedição longa que durou 10 meses, da qual ele mesmo não pôde tomar parte, pois negócios urgentes o levaram para outro lado. Depois de 10 meses sem ver sua esposa, ela retornara, em meio à dezenas de seus empregados, sendo observada por inúmeros olhares presentes no porto, o detalhe realmente humilhante é que sua esposa trazia em seus braços uma criança recém-nascida.

Ao descer o navio com a criança no colo, Ângela localizou seu marido e se encaminhou a ele em linha reta, cabeça erguida sem desviar para os rostos de olhares curiosos que os cercavam. Ela demorou exatos 60 segundos para chegar até Abaron, que a observou estupefato durante o minuto mais longo de sua vida. Nunca antes sentira tamanha humilhação, pânico, medo e o pior de tudo raiva. Durante a longa caminhada da vergonha, Abaron repassou em sua cabeça inúmeras possibilidades do que poderia significar a presença daquela criança no colo de sua esposa, e nenhum das respostas lhe agradava e ele tinha apenas uma certeza.

– O que significa isso? – Rosnou assim que Ângela se aproximou

– Esse é o nosso filho. – Respondeu Ângela de forma firme, olhando-o nos olhos.

E sua única certeza era:

– Meu filho, ele não é.

 

Abaron nunca se recuperou da humilhação de sua traição e acima de tudo, da exposição pública ao qual se submeteu. Ele estava certo sobre a criança não ser seu filho, porém a cada dia que ele batia em sua esposa para lhe dizer quem era o homem com quem ela o traíra, ela nunca cedeu seu espírito e imbuída da certeza que só a verdade pode trazer a uma alma desesperada respondia, mesmo ensanguentada e aterrorizada:

– Nunca lhe traí. Não há outro homem.

Ela dizia a verdade, mas a verdade não significa nada para uma pessoa que não quer ouvi-la. Abaron espalhou a notícia de que o menino Doran não era seu filho, mas sim uma criança deficiente que sua esposa acolheu durante aquela viagem. Essas notícias nunca convenceram ninguém sobre a filiação da criança, apenas de que era proibido perguntar sobre. Abaron sempre pode sentir os olhares lhe queimando as costas quando não podia ver quem cochichava toda vez que passava.

Além dessa humilhação, o que mais aconteceu na vida de Abaron que o levou a fazer o que fez pode ser resumida como falta de caráter e ambição. Seja lá o que foi, Abaron usou toda a sua influência e riqueza de comerciante para fornecer escravos para um povo além do mar norte, se preparar para uma vindoura batalha onde tomariam o Vale da Coroa, onde então, segundo as promessas, Abaron seria a mão Direita do Rei.

Falando dessa forma parece um conto fantástico ou um desejo megalomaníaco, porém Abaron e seus aliados chegaram a um paladino de distância de realizar pelo menos a primeira parte de seu plano. Durante anos eles capturaram pessoas dentro do continente, reduziram à escravos e os traficaram. Quando os navios da Espada da Coroa os perseguiam, eles fugiam para o Mar Norte, onde o Conselho dos Clãs determinaram um embargo fixando a distância máxima até onde qualquer navio da Coroa podia ir.

O Embargo do Mar Norte era uma farsa convenientemente alimentada pela superstição da Coroa sobre os perigos além do mar, com diversos membros da Fé professando que os Deuses ordenavam que fosse respeitado o embargo, a maioria deles subornado pelo próprio Abaron.

O Embargo amarrava as mãos do Comandante William Dufort na perseguição dos corsários escravistas, porém no dia em que Abaron decidiu ir junto de um dos navios corsários até a ilha onde os escravos eram levado, quis o destino que justamente naquele dia um navio da esquadra da Espada tivesse a permissão escrita e expressa de poder romper o Embargo e prosseguir na perseguição, assinado a próprio punho pelo Paladino Dufort.

Esse navio estava tripulado por combatentes e marujos experientes, muito bem armado, e carregava à bordo o mais experiente rastreador e matador de conjuradores arcano. Esse navio era o Trovoada Celeste.

 

Nôvagrad e Ron Tegard foram soltos da jaula onde passaram dias quando o guarda que os observava convenceu o Capitão Anton Bonitão de que eles não eram mais uma ameaça um para o outro, pois haviam firmado uma inusitada amizade. Precisando do máximo possível para operar seu navio Capitão Anton os soltou e colocou-os para trabalhar, também esperando que isso inspirasse a camaradagem entre o restante da tribulação para que eles não quisessem mais matar o Cão Traidor e o Maldito Faiscador. Mais uma vez Anton acertou em cheio em sua decisão, mesmo que por motivos que não passaram pela sua cabeça. Ron Tegard se mostrou um trabalhador incansável e disposto a seguir ordens sem hesitar. Enquanto Nôva um pouco mais preguiçoso, ganhou a simpatia de todos, quando Zéfir um marujo muito respeitado pelos demais pela sua aparente sabedoria decretou que Nôva trazia sorte para a viagem. Explico.

As pessoas que costumam navegar pelas águas do Deus-Ilha sabem o quão perigoso isso é.  As águas traiçoeiras, o vento imprevisíveis, bancos de areia, tempestades e monstros tomaram tantas vidas e impunham tantos fatores diferentes para se considerar ao navegar que era muito comuns que os marinheiros se tornassem supersticiosos. Amedrontados e incapazes de processar todos os fatores que decidem se vão viver ou não, os marinheiros muitas vezes recorrem à processos mentais de causalidade simples, e facilmente se convencem que só sobreviveram porque antes da tempestade bebeu três canecos de Rum, sendo que no último virou de ponta cabeça sua caneca e bateu com força num barril. Outros homens se convencem que ao abrir a porta do seu aposento você deve atirar um punhado de sal no chão antes de sair.

Zéfir era particularmente mais supersticioso que os demais e ganhara influência ao se tornar o especialista em ler os sinais do mundo e indicar aos demais o que os fez sobreviver à mais uma tempestade. Zéfir era na verdade um tolo, porém não mal intencionado. Ele realmente acreditava que lia sinais do mundo e não se demorava a dividir seu conhecimento com o restante.

Quando Zéfir percebeu que a possibilidade de encontrarem tempestades ou tempo bom, era diretamente relacionado com o bom ou mau humor de Nôvagrad, ele esteve certo pela primeira na sua vida. Mas não por superstição, e sim por ser Nôvagrad filho do Espírito da Tempestade Norte.

Zéfir não tinha ideia de quem era o verdadeiro pai de Nôva, mas quis os Deuses que um dia ele proclamasse: o menino Nôva é um bruxo, e nós não podemos desagradá-lo, pois quando ele enfurece… o céu se fecha, quando ele está feliz…o vento sopra forte em direção ao nosso objetivo.

Até mesmo o Capitão Anton acreditou e permitiu que Nôva não mais precisasse trabalhar para operar o navio, podendo ele passar os dias como bem entendesse. Nôvagrad os passava na sua maioria tentando meditar e treinando artes marciais que os Monges o ensinaram na proa do navio, onde se sentava demoradamente com as pernas em posição de lótus. Lá, Nôva sentia o vento soprar no seu rosto e repensava em sua vida. Ron Tegard se juntava à ele na hora do almoço e levava o seu prato e o ouvia tagarelar.

Nôva lhe confessou que após fugir do monastério ele vagou a esmo pela floresta até quase morrer de fome, até que foi encontrado pelos tripulantes do Trovoada Celeste onde foi aceito para substituir parte da tribulação que faleceu no meio da viagem.  A verdadeira confissão na verdade, era que Nôva sempre sentiu que o vento o chamava, e que ele podia controlá-lo, mas nunca confiara em ninguém à sua volta para falar sobre. Ele nunca se sentiu vivo, até quase morrer de fome, e após vivenciar a verdadeira liberdade, com todas as dores que veio com ela, ele finalmente percebeu que podia ser feliz. O horror que viveu sob o teto do homem que o batia e dizia não ser o pai dele, o convenceu em sua alma que ele era destinado a sofrer. E hoje, ele ficava feliz apenas de sentir o vento no rosto e ouvir as ondas contra o navio.

– Não entendo como pode ficar tão feliz só de sentir esse vento no rosto. O vento é incomodo, eu mal consigo abrir os olhos com essa ventania toda. – Lhe Disse Ron Tegard.

– Minha mãe sempre me contou que durante a viagem de navio onde eu nasci houve tempestades violentas, até o dia em que ela percebeu que estava grávida. A partir de então os ventos sopraram forte sempre a favor, e que tempestades eram vistas à distância, mas que o navio não passou por mais nenhuma. Ela costumava me dizer que o rio Aorta gostava de mim desde antes de eu nascer. Acho que é por isso que eu gosto tanto do vento.

 

Em algum ponto além do tecido da realidade limitado pelas quatro dimensões que os humanos habitam, os Deuses tecem o nosso destino.

O navio corsário carregando dezenas de escravos e Abaron Lobran não esperava ser perseguido além do ponto do Embargo no Mar Norte. Mas ele foi perseguido pelo Trovoada Celeste.

O Paladino William desconfiava de apoio interno da coroa na operação dos corsários e ordenara que um navio de confiança perseguisse o próximo navio corsário além do Embargo. Certificara-se de equipar bem os tripulantes e que levassem um experiente rastreador.

Ron Tegard fizera amor com Dogah no dia anterior à sua morte, na beira daquele lago. E naquela noite Dogah lhe disse que seria a última vez que o veriam, e quando ele mandou que ela se calasse prometendo mais uma vez que lhe daria uma vida longe e farta, ela disse para ele não desconfiar da intuição daqueles que conjuram magia.

Capitão Anton Bonitão olhou nos olhos do menino magricela morrendo de fome que pedira para ir com ele em seu navio. Fez uma pergunta sobre como operar um navio, a qual o menino errou completamente, mas mesmo assim algo o fez aceitar o pedido do menino que veio a conhecer como Nôva.

Nôvagrad estava de pé em cima da murada do Trovoada Celeste de olhos abertos e ouvidos atentos quando ouviu o vento dizer que um navio Corsário estava próximo, mas que a névoa os ajudaria aquela noite.

Nem mesmo o criador de superstição Zéfir acreditou em Nôvagrad quando ele dividiu com os demais o que os ventos lhe dissera. Mas Ron Tegard lembrando o que lhe dissera Dogah defendeu a intuição de Nôva com tamanho vigor que Capitão Anton ordenou que todos dormissem bem aquela noite, porém todos armados e alertas.

Abaron Lobran à bordo pela primeira vez em um dos navios que coordenara para traficar pessoas, estava mais tenso que os demais tripulantes acostumado àquela viagem e observou que estavam sendo perseguidos mesmo depois da linha do Embargo. E ordenou que o Capitão da embarcação abordasse o navio e o destruísse, assim que possível.

Naquela noite uma névoa se ergue limitando a visibilidade. E o navio Corsário enviou diversos botes equipado de homens bem treinados e armados abordar de surpresa o navio que os perseguia. Se a surpresa não fosse o suficiente, o poderoso Bruxo que fora enviado para liderá-los seria.

Naquela noite os homens do Trovoada Celeste dormiram apreensivos, com um olho fechado e outro aberto, adormeceram como puderam em suas armaduras, esperando o agouro de Nôva se concretizar ou não. E quando os primeiros homens ouviram pessoas subindo o casco do navio com o uso de ganchos na ponta de cordas, eles estavam prontos para reagir rapidamente e uma batalha irrompeu no navio. Os ventos avisaram Nôva, e por isso era uma batalha e não um massacre.

Quando o bruxo eliminou rapidamente cinco tripulantes com um só movimento de mão, seguido de um leque com mais de 4 metros de chamas, Ron Tegard felizmente estava à bordo e com a experiência adquirida por anos caçando faiscadores abateu o bruxo rapidamente, com a ajuda de seus cães adestrados.

Neutralizado o ataque, os marujos do Trovoada Celeste usaram os mesmos barcos que trouxeram os Corsários para voltar até o navio deles, que estava ancorado metro adiante, escondido pela neblina. Lá encontraram pouca resistência, pois a maioria dos guerreiros já havia morrido falhando em tomar o Trovoada.

Quis os deuses que o homem que foi receber a tripulação do Trovoada, pensando ser os próprios Corsários, fosse Abaron Lobran. O comerciante se debruçou sobre a murada e jogou a escada de cordas em direção a névoa densa. E aguardou emergir dela o primeiro homem subindo a escada. O homem era magro e não usava armaduras, não se parecia com nenhum dos homens que fora atacar o Trovoada Celeste. O homem magro terminou de escalar a murada e encarou Abaron Lobran nos olhos, demorando um pouco para reconhecê-lo.

No ponto além do Espaço-Tempo em que os Deuses tecem o nosso destino, eles riram, quando Nôvagrad reconheceu Abaron Lobran à borda daquele navio. Eu gosto de imaginar que eles mal se aguentavam em pé de tanto rir quando Abaron, já no chão, com nariz quebrado diante dos golpes desferidos contra si por aquele jovem familiar e magricela. Apoiou-se no próprio cotovelo e olhando para o homem que lhe surrava e reconhecendo-o, escolheu entre todas as palavras que poderia ter dito a pior possível:

– Filho?

Nôvagrad acertou Abaron com um chute no estômago que lhe tirou todo o ar, seguido de um soco no maxilar que o impediria de mastigar por dois meses com aquele lado da boca, seguido de outro soco no mesmo ponto do maxilar para que ele nunca mais pudesse comer com aquele lado da boca. Já no chão, Nôva não controlava mais a si mesmo quando desferiu mais duas cotoveladas, no nariz e costelas de Abaron, uma joelhada na testa e quando levantou a mão para mais um soco sentiu seu punho ser segurado por Ron, que lhe dissera com sua voz rouca e calma:

– Matá-lo não vai te fazer se sentir melhor, Nôva.

Nôvagrad arfando alto pelo esforço e adrenalina se arrastou para trás, sentado no chão.

– Não quero me sentir melhor. Quero matar esse canalha!

Ron se posicionou entre Nôva e Abaron, que jazia inerte contra a murada do navio, uma massa de sangue e ferimentos.

– Não sei quem esse homem é para você, Nôva. Mas seja lá o que ele fez matá-lo não vai mudar o passado.

– E se fosse Alan Corg parado ali, você diria o mesmo?

Finalmente entendendo que era aquele homem. Ron colocou a mão na espada ainda embainhada e continuou calmamente a conversa com Nôva.

– Eu já teria matado Alan Corg se ele estivesse aqui. Mas eu sou um assassino. Você não.

– Eu já matei homens antes.

– Em batalha. Em defesa própria e das pessoas à sua volta. Isso o que você quer aqui, é uma execução. Um homem rendido, derrotado. Você não quer carregar isso na sua alma.

Antes que Nôva pudesse rebater, Ron Tegard sacou sua espada e num movimento rápido, certeiro e sem hesitação, fincou sua espada na murada do navio, trespassando a garganta de Abaron Lobran no processo, cujo corpo ficou estranhamente ereto contra a murada, preso pela garganta.

Após alguns segundos de silêncio, Nôva disse:

– Você falou que matá-lo não me faria bem, e que será assassinato.

Ron Tegard recolheu a sua espada, e limpou o sangue dela na própria roupa.

– Eu disse, meu caro amigo, que não faria bem a VOCÊ . E que eu já sou um assassino. Não é o primeiro e nem será o último assassinato que cometo.

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